Anarquistas Contra a Peste

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Malatesta e a Epidemia de Cólera de 1884

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Em 1884, a cólera varreu a Itália, levando milhares de vidas. Apesar de uma sentença de três anos de prisão pairando sobre sua cabeça, Errico Malatesta juntou-se a outras revolucionárias anarquistas em uma missão ousada até Nápoles – o coração da epidemia – para tratar aquelas sofrendo com a doença. Ao fazer isso, ele e seus camaradas demonstraram uma alternativa às políticas coercitivas do Estado que continua relevante na era da COVID-19.

O seguinte texto narra a história do surto e da intervenção de Matalesta, incluindo todos os materiais primários disponíveis sobre a participação de anarquistas da Itália, alguns dos quais não apareceram antes em inglês (ou português). Grande parte do contexto histórico é tirado do excelente Naples in the Time of Cholera, 1884-1911. de Frank M. Snowden. Agradecemos à Davide Turcato, o editor das obras completas de Malatesta; ao Centre International de Recherches sur l’Anarchisme em Lausanne; e às arquivistas e bibliotecárias radicais de todos os lugares que preservam a história anarquista, permitindo-nos aprender com o passado.


“Em 1884, a cólera arruinou diversas partes da Itália, sendo especialmente virulenta em Nápoles. De acordo com as estatísticas oficiais, a cólera afetou mais de 14 mil pessoas na província, matando 8 mil delas, das quais 7 mil morreram apenas na cidade de Nápoles. O Estado reagiu impondo medidas repressivas: a cidade foi posta sob lei marcial, restrições de movimentações foram impostas, usando métodos similares àqueles empregados na época do terremoto de Messina ou o terremoto mais recente em Áquila. Voluntárias da Cruz Branca, Cruz Vermelha, social democratas, republicanos e socialistas adotaram abordagens bem diferentes. Felice Cavallotti, Giovanni Bovio, Andrea Costa e Errico Malatesta, foram ativos nas ruas de Nápoles. E não sem algum risco às suas próprias saúdes: os voluntários socialistas Massimiliano Boschi, Francesco Valdrè e Rocco Lombardo contraíram cólera e morreram.”

-Elegia de Alessia Bruni Cavallazzi para Florentine Lombard, uma anarquista inglesa que serviu à Cruz Vermelha durante a epidemia

“Malatesta e camaradas de várias partes da Itália foram a Nápoles como voluntárias médicas para cuidar daquelas acometidas pela epidemia de cólera. Dois anarquistas, Rocco Lombardo e Antonio Valdrè, morreram lá, tomados pela doença. O bem conhecido anarquista Galileo Palla distinguiu-se especialmente pela sua abnegação, energia e espírito de sacrifício. Sendo um ex-estudante de medicina, Malatesta ficou encarregado por uma seção de pessoas doentes; elas tiveram uma taxa de recuperação particularmente elevada porque ele sabia como mobilizar a cidade de Nápoles a entregar alimentos e remédios em abundância, os quais ele distribuía livremente. Foi-lhe oferecida uma condecoração oficial, a ordem do bom mérito, a qual recusou. Quando a epidemia acabou, anarquistas deixaram Nápoles e publicaram um manifesto explicando que ‘a verdadeira causa da cólera é a pobreza e o verdadeiro remédio para prevenir seu retorno não pode ser nada menos que a revolução social’.”

-“La Vida de Malatesta”, por Luigi Fabbri1

A cólera é uma doença infecto-bacteriana, normalmente contraída a partir de fontes de água infectadas, que podem causar vômitos e diarreia levando à morte. Era “a verdadeira causa da cólera” de fato a pobreza, ou isso era apenas retórica ideológica? Leia e tire suas conclusões.


As Origens da Itália – e do Anarquismo Italiano

A Itália era um país recém-formado quando a epidemia de cólera explodiu em 1884. Para entender o porquê de Nápoles ter sido atingida de forma tão crítica, e o que significava para anarquistas irem para lá em solidariedade, precisamos voltar duas décadas antes.

Até 1861, não havia essa tal “Itália”. A península era dividida em vários reinos e ducados que estavam sob domínio de muitos governantes locais. Originalmente, os proponentes da unificação italiana eram nacionalistas como Giuseppe Mazzini, que convocaram revolucionários republicanos pela Europa para depor os velhos monarcas e estabelecer novas nações, baseadas no uso da comum da língua, geografia e “um propósito de unidade”. A ideia era de que pobres e ricos deveriam trabalhar juntos em solidariedade sob a bandeira de uma nação.

De fato, as pessoas na península italiana não compartilhavam uma língua em comum, ou mesmo a cultura. Muitos dialetos falados em diferentes partes da península eram incompreensíveis entre si; havia diferenças econômico-culturais entre as regiões. Mazzini procurava inventar uma língua e uma cultura comum onde não existia, a fim de criar as bases para um Estado moderno competitivo.

Contrariando suas intenções, aqueles que buscavas levar adiante o projeto de libertação nacional de Mazzini, acabaram relvando à unificação da Itália sob uma monarquia. Revolucionários como Giuseppe Garibaldi arriscaram suas vidas em guerrilhas para unificar a península enquanto uma república, mas sempre que eram vitoriosos em depor um rei, outro simplesmente assumia o controle da área, até que o rei Victor Emmanuel de Sardenha governou a Itália inteira. Uma vez que assumiu o poder, o rei Victor Emmanuel não trabalhou sob a bandeira de uma nação para benefício de todos os italianos; ao invés, ele imediatamente passou a saquear parte sul da península para enriquecer seus próprios cofres. Pensando que todos os italianos compartilhavam interesses comuns, Mazzini fracassou em conter o conflito de classes nas bases da sociedade capitalista.

No exílio em Londres em 1864, Mazzini da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, uma federação mundial de sindicatos. Karl Marx expulsou Mazzini logo no começo, apenas para perder o controle da Internacional para anarquistas, como Mikhail Bakunin. Bakunin foi participante de lutas pró libertação nacional, mas tornou-se desiludido com as contradições e deficiências do nacionalismo.

Nascido fora de Nápoles, em 1853, Errico Malatesta cresceu participando de uma das sociedades secretas de Mazzini; quando estudava medicina na Universidade de Nápoles, ele foi expulso e preso enquanto por participar em um protesto Mazzinista. Ainda sob o reinado de Victor Emmanuel, ele percebeu que ser governado por um rei italiano não era melhor que ser governador por um monarca de qualquer outra nacionalidade. Na época da comuna de Paris, na primavera de 1871, Malatesta e seus camaradas buscavam uma nova abordagem para a mudança social.

Na Itália, era Bakunin, e não Marx, que representava a principal alternativa ao nacionalismo de Mazzini. Malatesta e seus companheiros entraram na Internacional associados a Bakunin e outros antiautoritários de toda a Europa. Sem dúvidas, a radicalização do setor italiano da Internacional marcou a emergência do anarquismo como um movimento social independente. Também houve um impacto significativo nas organizações de trabalhadores na Itália, onde o anarquismo continuava sendo a corrente mais forte nos movimentos trabalhistas por muito tempo depois, modelando o caráter antiautoritário das organizações de trabalho de base em Nápoles, e em toda a península italiana.

Malatesta comprometeu-se a uma vida de luta revolucionária, ajudando a estabelecer associações de ajuda mútua para trabalhadores em toda a Itália e participando em insurreições em 1874 e 1877. Tudo isto chamou a atenção das autoridades, levando a uma série processos judiciais e prisões. Em 1883, depois de anos em exílio, Malatesta retornou à Itália para publicar um jornal e continuar as organizações.

Errico Malatesta.


Nápoles nas Vésperas da Epidemia

Em 1884, mais de meio milhão de pessoas viva em Nápoles, tornando-a a cidade mais populosa da Itália. Boa parte da população consistia de camponeses migrantes do interior, que trabalhavam como artesãos ou vendedores, ou simplesmente estavam desempregados. Os salários na Itália estavam dentre os mais baixos da Europa, e em Nápoles eles eram menores que em qualquer outra cidade italiana. O aluguel representava pelo menos metade dos gastos totais de cada família. Organizações capitalistas ilegais estipulavam o preço da comida e trabalhavam com as autoridades municipais para controlar quais tipos de atividades criminosas eram toleradas.

Após a unificação da Itália, Nápoles perdeu seu status de centro da monarquia. Consequentemente, as elites concentraram todas as riquezas e o poder, sem um dinamismo econômico que permitisse compartilhá-los com o resto da população. Poucos recursos foram empregados em sistemas públicos de saúde. Os hospitais eram anti-higiênicos, superlotados e precariamente equipados, possuindo uma merecida má reputação. O partido de direita estava no governo. O partido de esquerda representava uma oposição leal que pedia simplesmente por reformas insignificantes, enquanto que a Igreja Católica era poderosa o suficiente para se constituir como um terceiro poder na sociedade.

As anarquistas não viram possibilidades significativas de reforma dentro deste sistema. Ao contrário, elas focaram em construir trabalho de base em redes nas quais trabalhadores, camponeses e pessoas pobres pudessem circular recursos para garantir sua subsistência coletivamente, defender-se contra injustiças e espalhar uma visão possível de um mundo em que o poder, os recursos, e a liberdade são compartilhados por todas.

Alguns elementos destas conjunturas são análogas à da nossa situação atual, onde uma economia pós-industrial deixou grade parte da população sem empregos estáveis ou poupanças. Medidas de austeridade sucatearam os serviços públicos de saúde para enriquecer alguns poucos, enquanto o sistema político repetidamente decepciona quem está em busca de mudanças sociais.

A cólera no Egito – queima de enxofre e alcatrão como desinfetantes nas ruas de Cairo à noite.


Julho de 1884: A Cólera Chega na França

A Cólera e a guerra imperial sempre estiveram interligadas. Em 1883, soldados indianos servindo nas tropas britânicas que estavam ocupando o Egito levaram a cólera para a costa norte da África, onde ela matou 60 mil pessoas. Em 1884, tropas francesas estavam participando de campanhas coloniais pelo controle da Indo-China, durante a qual uma epidemia varreu a região devastada pela guerra. A cólera viajou de volta pela cadeia de abastecimento militar até o Mediterrâneo, chegando no porto francês de Toulon e espalhando para Marselha em 25 de Junho.

O povo e a imprensa reconheceram que a intervenção militar francesa foi a origem da epidemia. Manifestações e pixações amplamente espalhadas denunciaram a política de expansão colonial do governo francês. Na França, bem como na Itália, anarquistas entenderam que a dominação colonial de outros povos beneficiava uma classe dominante de colonizadores enquanto colocava em perigo pessoas comuns em ambos os lados.

A cólera chega em Toulon.

Em 1884, bem mais de 200 mil italianos viviam na França. A maioria eram ex-pequenos proprietários ou arrendatários de terra que estavam envolvidos na agricultura até que a expansão do mercado mundial os levou a falir e atravessar fronteiras para procurar emprego — exatamente da mesma maneira que o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) desenraizou inúmeros campesinos mexicanos e os empurrou pela fronteira dos EUA 110 anos depois. As maiores concentrações estavam em Toulon e Marselha, com população italiana de 10 e 60 mil, respectivamente. Essas também foram as cidades francesas mais atingidas pela cólera — e a epidemia atingiu mais as comunidades pobres de imigrantes.

“Uma proporção bem grande de vítimas em Toulon e Marselha eram italianas”, o jornal New York Times informou. A taxa de mortalidade para imigrantes da Itália pode ter chegado a 1 em cada 10 pessoas. Em “Naples in the Time of Cholera”, Frank M. Snowden descreve uma atmosfera apocalíptica:

As cidades eram pulverizadas com ácido carbólico em uma tentativa de “afogar” os germes coléricos; fogueiras de alcatrão e enxofre eram acessas em toda esquina para purificar o ar; reuniões públicas de qualquer tipo estavam proibidas; passageiras de ferrovias e suas bagagens eram fumigadas; dutos de esgoto foram lavados. A paisagem urbana foi subitamente tornada irreconhecível pelo fogo, fumaças pungentes, o cheiro não familiar de ácido e as ruas quase desertas. Nesse ambiente ameaçador, toda atividade econômica parou, uma vez que fábricas e lojas fecharam. Mantimentos tornaram-se quase impossíveis de serem achados, e aquelas que permaneceram ansiosamente observavam pelos primeiros sintomas premonitórios, convencidas de que estavam inalando veneno a cada respiração.

A cólera em Toulon.

Em julho de 1884, enquanto especialistas da Academia Francesa de Medicina financiados pelo estado ainda tentavam negar que ocorria um surto real de cólera, muitos italianos foram internados no hospital Pharo, em Marselha. Na cidade, os médicos franceses de classe média fumavam charutos constantemente, a fim de criar o que eles imaginavam ser uma cortina de fumaça protetora entre eles e seus pacientes de classe baixa; os médicos experimentaram uma variedade de tratamentos especulativos, incluindo eletrochoque. Nas primeiras semanas da epidemia, a taxa de mortalidade no hospital de Pharo foi de 95%.

Para piorar a situação, a crise também intensificou o fanatismo contra os imigrantes italianos. Para o governo francês e a classe dominante, essa era uma oportunidade de se livrar do que alguns deles consideravam ser uma parte incontrolável da população excedente. Impulsionados pela ameaça de morte causada pela epidemia, além de ataques xenófobos e políticas agressivas do governo, dezenas de milhares de italianos fugiram para o outro lado da fronteira — levando a epidemia com eles.


Por todas essas razões, anarquistas italianos se preocuparam imediatamente com a epidemia, que se espalhou pela costa francesa em julho de 1884.

Nessa época, Malatesta estava em Florença, Itália, editando o periódico anarquista La Questione Sociale. Expulso da Itália pela pressão policial após a fracassada insurreição de 1877, ele viveu na França, Inglaterra e Egito — onde, segundo Luigi Fabbri, ele tentou se juntar à insurreição anticolonial liderada por Ahmed ʻUrabi, a mesma insurreição que trouxe as tropas britânicas da Índia para reprimir.

Ao retornar à Itália em 1883, Malatesta foi preso por seis meses sob acusações falsas de “associação subversiva”, uma forma de acusação vaga de conspiração que o Estado italiano vem usado para impedir militantes anarquistas de se organizarem pelos últimos 150 anos. Em janeiro de 1884, sem nunca ser levado a um júri, Malatesta foi condenado a três anos de prisão, mas foi libertado enquanto aguardava sua apelação. Essas eram as condições em que ele e seus companheiros estavam se organizando e publicando materiais.

O artigo a seguir da edição de julho de 1884 da La Questione Sociale, possivelmente escrito pelo próprio Malatesta, expõe como Malatesta e seus camaradas entendiam as causas da epidemia. Sua teoria de que a cólera se originava em deltas poluídos dos rios era compartilhada pela maioria dos médicos italianos instruídos na época, embora tenha sido superada pelas pesquisas modernas. Por outro lado, seu argumento de que o capitalismo falha em fornecer motivação para resolver problemas coletivos permanece tão pertinente agora quanto no dia em que foi escrito. O apêndice, uma tradução de uma carta de um carpinteiro parisiense, é especialmente arrepiante de ler em uma época em que os capitalistas estão nos pedindo para voltar ao trabalho, mesmo com risco de morte, pelo COVID-19, e uma parte da classe trabalhadora está ansiosa para obedecer.

“Um sol nascente, uma pena, uma arma e so-li-da-ri-e-da-de!”

Il Colera

A Cólera chega à França: talvez irá expandir-se toda a Europa.

Pessoas satisfeitas com o sistema normalmente nos acusam de sermos tendenciosos e exagerados quando atribuímos a maior parte dos males que afligem a humanidade à ordem social dominante. Elas falam sobre sorte ou destino (das leis naturais), buscando separar-se de suas responsabilidades e também do sistema social que as produz ou apoia, culpando a natureza inconsciente, muitas vezes a intemperança, o inesperado, dentre outros vários ditos populares.

Veremos que essas pessoas, que sempre consideram a dor e a miséria de outras como necessárias e inevitáveis, também recorreram a uma explicação das leis naturais para a cólera, que volta e meia reaparece, como inexplicáveis ou mesmo úteis. Afirmamos que a existência da cólera, e sua chegada a Europa e o ambiente condutor para o seu desenvolvimento entre nós, são culpa do sistema social atual.

A Cólera (pelo menos a variedade Asiática, que é a verdadeiramente temível) vem da foz do rio Ganges, assim como a peste uma veste veio a partir da foz do Nilo, e também como a febre amarela ainda vem da foz do Mississippi, devastando partes da América e Oeste da África, sendo uma ameaça frequente à Europa.

Estas doenças são derivadas de pântanos que se formam na foz dos rios que estão descuidados, graças à decomposição de corpos e outros resíduos orgânicos que as grandes correntes carregam e depositam ali. Parte da foz do rio Nilo foi reestruturada; a peste quase desapareceu completamente do Egito e foi totalmente esquecida na Europa. Porque não cuidar da foz do Ganges também?

Pode ser que dê um trabalho enorme, com custos altíssimos, mas o que é isto comparado ao que os governos gastam de forma improdutiva ou danosa? Qual a grande inconveniência ou os custos de uma campanha dos povos europeus contra a cólera, comparada com os repetidos danos material e moral gerados por guerras?

Não cuidaram da foz do Ganges porque esse trabalho não se prestou, até hoje, à especulação privada, através da qual uns poucos capitalistas poderiam ter se enriquecido sob o suor e a morte do povo empobrecido da Índia. E também porque na falta de solidariedade em que vivemos, da rivalidade, do egoísmo e do patriotismo, impedem que todas as pessoas contribuam livremente para melhorias do solo em que vivem, e no lugar dão combustível ao ódio e às guerras.

É possível que as fozes e todas grandes as pestes que corrompem o mundo não sejam curadas até que as condições econômicas e políticas da humanidade estejam completamente transformadas – ou seja, até o dia em que o mundo pertença a todos e a todas e que tenhamos o direito e os meios de trabalhar em prol de desenvolvê-lo; até que ninguém reivindicar um lugar privado sobre uma porção de terra e erga barreiras para impedir de que as pessoas corrijam isso; até que todas as forças empregadas na rebelião e repressão hoje, em guerras e preparações para guerras, que estão latentes ou inativas, possam ser usadas de maneiras úteis, e até que sejam aumentadas em um milhão de vezes por associações coletivas, retornem à humanidade todo o poder que podemos alcançar em relação ao ambiente natural.

Mas não é absurdo falar sobre os cuidado com o rio Ganges – justo aqui na Itália, onde as margens que estão próximas a nós não são cuidadas, muito pelo contrário, estendem enormemente sua área de perigo!

E a cólera que poderíamos eliminar, mas não conseguimos por causa da nossa forma de organização social, essa cólera da qual não libertamos a Índia, e que a Índia nos trás de tempos em tempos, como que para nos lembrar que a humanidade nunca é impecável com a impunidade e contra a solidariedade humana – essa cólera veio para a Europa por si, carregada pelas correntes de ar, sem que isso fosse culpa de ninguém?

Não, nem perto disso. Ao contrário, parece que o governo da república francesa nos deu a cólera. A França civilizada vai conquistar os bárbaros da Ásia e seus navios, mais ou menos vitoriosos, retornam carregando consigo o terrível flagelo da doença. Nós, pessoas civilizadas, infligimos massacres e desolação aos bárbaros com baionetas e canhões e os bárbaros nos retornam com o massacre e a desolação através da cólera. Ó, família humana! Tirando que o massacre que carregamos é voluntário, infligido pelo propósito do roubo, enquanto que a vingança dos bárbaros é involuntária e inconsciente. Então, quem são os bárbaros?

E aqui na Europa não há casas com problemas de saneamento, comida ruim e insuficiente, trabalhos exaustivos, não há também pobreza (a filha da propriedade privada) que torne viável que a doença asiática se espalhe? Quando o perigo nos ameaça, as comissões sanitárias se ocupam em promulgar medidas incompetentes que seriam risíveis se não fossem de chorar, ou sugestões que só são bem sucedidas como uma expressão irônica sangrenta. Você ouve esses grandes discursos de universidades ou conselhos de saúde que pregam “Coma comidas saudáveis e evite sobrecarga no trabalho”. E aí, quando os agricultores que ganham em média 27 centavos por dia e vivem de polenta estragada e água que nem sempre é limpa, demandam por melhorias nas condições de vida, o governo que paga os estudantes universitários e os conselheiros de saúde (com o dinheiro do povo, claro), encarcera os camponeses e coloca os soldados a disposição dos patrões. E os médicos que deveriam renunciar seus consultórios, o que se provou inútil, e responsabilizarem o governo e os chefes por suas atividades assassinas, continuam a divulgar e ditar conselhos!

Enquanto isso, a cólera continua a se espalhar lentamente, e talvez em breve ela irá emergir com força total. E causará mais mortes e mais dor que dez revoluções, sendo que apenas uma seria suficiente para eliminar de vez a cólera e milhares de outros sofrimentos para sempre. No entanto, por ora, os de coração caloroso continuarão a temer os excessos revolucionários!


Apresentamos a seguir, uma tradução fiel da carta que carpinteiros parisienses enviaram ao diário socialista Le Cri du Peuple (“O Grito do Povo”). É uma carta autêntica, em que apenas algumas correções quanto à forma foram feitas: ela é árdua, crua, mas descreve vividamente as condições de luta que os burgueses impuseram aos trabalhadores, expressa verdadeiramente os humores mais energéticos e mais ameaçadores dos membros do proletariado.

Burgueses, se o egoísmo não os reduziu completamente a imbecilidade, reflitam sobre essa carta; pensem o que poderia acontecer a vocês se no dia da revolução encontrarem esses trabalhadores e trabalhadoras que, graças aos seus atos, tem mantido apenas uma esperança, de ter de produzir caixões e…mas é tudo inútil; vocês vão continuar como estão e o que está destinado a vir, virá.

« Algumas pessoas que ouviram falar que a cólera chegou, sentem seus estômagos revirarem. Pelo contrário, ao invés de temer a doença, eu clamo: Viva! Que venha logo.

« A vida é dura. Eu sou um bom trabalhador e amo meu trabalho. O cheiro de madeira preenche meu peito. Que lindas são os talhados curvos, feitos com entusiasmos com grandes golpes do talho plaino! Que belo é som os dos machados sob as marteladas! Nunca estou tão contente como quando grandes gotas de suor pingam no meu banco, da minha testa molhada.

« Estou desempregado! Há dois meses não tenho um trabalho. Todos os patrões têm – pelo que dizem – muitos trabalhadores e poucas vagas. Dois meses sem trabalhar! Um pouquinho mais e minhas mãos se tornarão macias e brancas como as de um burguês. Mas enquanto isso, tudo está penhorado… nas despensas não há nada mais que fome. Não há nada no meu quarto além de um prego e um pedaço de corda. Guardo-os, eu penso, podem ser úteis.

« Eu fui de porta em porta oferecendo meus serviços bem barato. Nada. Eu viajei por toda a região. Eu caminhei por milhas junto das estradas brancas, ao longo das quais tristes ulmeiros morrem de sede. Toda vez que eu ouvia o martelar do martelo a distância, o ranger da serra, meu coração acelerava. Vã ilusão! Sim, a esperança voltava! Mas não, nada. Em todo lugar a mesma coisa, e eu retornei pela tarde, quando não agüentava mais, de coração partido, passando fome, de garganta seca e com as solas dos meus sapatos ainda mais gastas que do dia anterior.

« Como vocês não querem que eu e os outros que estão na mesma sitação que a minha não gritem: ‘Viva, cólera’? Tendendo para frente, cheios de esperança, nós esticamos nossos braços e acenamos com nossos chapéus, como fazemos quando nós enxergamos a face de um amigo há muito tempo aguardado, quando viramos a esquina. Então, deixa-a vir e que venha rápido! Com suas mãos esqueléticas e esverdeadas, nas dobras de seu manto envenenado, ela trás a doença do trabalho; trabalho para nós. Se ela vier mesmo lá da Ásia, haverá demanda para caixões. Eu posso fazer caixões, eu sei fazê-los!

« Alguns grandes, outros pequenos. Alguns são belos, outros padrão. Para ricos e pobres. Feitos de carvalhos ou pinheiros. Aqui está. Estejam servidos. Haverá um para todo mundo. Só pedir. Quem é o próximo? Vamos, continuem com o plano! Qual? Será minha culpa que para que eu viva outros tenham de morrer? E centenas, milhares. Então nós, trabalhadores, teremos de trabalhar e poderemos requisitar qualquer compensação que quisermos; e celebraremos! Vida longa à cólera.

« Vocês não tem medo de nós, peste. Se você quer acabar com nossos corpos que mal estão de pé, agradeço. Já não é bom levar a vida como levamos. Mas enquanto esperamos que você nos conduza ao inferno, você certamente irá nos dar uns trocados e nós vamos rir da sua cara. Seja tão má quanto queira, você não é tão assassina quanto a falta de emprego, nem tão egoísta como os burgueses, nem tão cruel quanto os exploradores.

« Venha. Meus braçoes são fortes o suficiente para fazer caixões para Paris inteira, se você quiser. Medo? Pra longe de nós! Viva a cólera!


A polícia de Florença perseguia repetidamente o “La Questione Sociale”, valendo-se de infrações pequenas para justificar o confisco de todas as cópias do jornal. Malatesta e seus companheiros foram obrigados a parar de publicar no início de agosto de 1884, justo quando a cólera se espalhava em torno do mediterrâneo.


Agosto 1884: A cólera chega à Itália

Na Itália, representantes da Igreja Católica tiraram vantagem da situação para descrever a epidemia como o julgamento de Deus em uma sociedade laica – especificamente como uma punição pela expansão do socialismo e do ateísmo. Eles persuadiam as pessoas para se prostrar em penitencia ao invés de aderir às medidas de segurança.

O Estado ressuscitou as medidas de quarentena de protocolos de séculos anteriores usados para lidar com a peste bubônica, enviando os militares para formarem uma barreira por toda fronteira Francesa. As políticas pareciam vacilantes e arbitrárias; primeiro, eles detinham viajantes por três dias, depois por cinco e depois por sete. Para a liberação da quarentena, todos os viajantes e seus pertences foram desinfetados com enxofre e cloro, ou desinfetados com ácido carbólico, sublimado corrosivo, ou cloreto de mercúrio. Isso não tenha efeitos médicos além de causar irritação nos pulmões. O propósito chave era criar um espetáculo dramático, para que o Estado fosse visto como promotor de ações contra a epidemia.

Para um equivalente moderno, precisamos analisar para além dos recursos gastos pelo Estado para desinfetar cidade inteiras em resposta ao coronavírus, quando na verdade a maioria dos casos são por contágio via contato entre pessoas.

“O Pânico da Cólera na França”

Por duas vezes deslocados, os refugiados que retornavam à Itália não estavam afim para ficar presos em campos; muitos deles burlavam o cordão militar, viajando ilegalmente pelas colinas. Como os casos de cólera apareceram em uma região da Itália após a outra, mais cordões militares foram implantados em todo o país (Isso lembra as acusações de “associação subversiva” acima mencionadas, com as quais o Estado italiano tentou controlar anarquistas, impondo limites regionais às viagens até os dias atuais.) Os cordões internos interromperam a economia, impuseram fome, geraram medo e espalhar xenofobia e paranóia pela Itália. Algumas pessoas supersticiosas passaram a considerar os estrangeiros que viajam como malfeitores que pretendem espalhar doenças, assim como hoje os conservadores ignorantes atribuem o COVID-19 a algum tipo de conspiração chinesa – quando não o chamam de fraude do Partido Democrata.

De qualquer forma, a tentativa de parar a cólera por meio de bloqueio militar foi um fracasso tremendo. O estado sempre esteve dois passos atrás da epidemia – e suas intervenções pesadas apenas levaram as pessoas a ocultar notícias de novos surtos. Como Snowden argumenta,

“Na era da medicina científica, políticas públicas de saúde sólidas dependiam de informações precisas e rápidas. A ameaça da força militar era a melhor maneira de acabar com as linhas de comunicação entre a população e as autoridades. Pior ainda, mover um grande número de soldados, em grande parte provenientes de grupos sociais de alto risco, de lugar em lugar com condições insalubres, era em si um excelente meio de espalhar uma epidemia. Uma grande parte da história da cólera foi a história do movimento de jovens de uniforme.”

Esse fenômeno é familiar ainda hoje, quando a polícia de Nova York e Detroit desempenham um papel importante na disseminação do COVID-19, levando-o de um bairro para outro e transformando cadeias e prisões em campos da morte.

A primeira cidade italiana a vivenciar um grande surto de cólera foi La Spezia, uma cidade portuária como Toulon. As primeiras mortes foram ocultadas por médicos oficiais, mas depois que a cólera contaminou as reservas de água, e as fatalidades decolavam, os militares fecharam a cidade completamente, impondo a fome e o pânico. No meio de setembro, houve dois dias de confrontos desesperados entre os habitantes que tentavam sair dos cordões militares à força.

Para lidar com o grande número de refugiados em quarentena, as autoridades italianas estabeleceram os lazaretos – campos de quarentena – incluindo um em uma ilha imediatamente fora de Nápoles. Nesses centros de confinamento, os guardas obrigavam refugiados a trocarem seus últimos pertences por comida. O contágio retornou a Nápoles através desses bens roubados. Estes campos de quarentena nos lembram de campos de concentração como os que existem na ilha de Lesbos, nas quais os governos europeus internam refugiados hoje em dia; em alguns casos, continua sendo uma prática oficial dos governos de tomar os bens pertences dos refugiados em troca de seu confinamento. Esses campos em nossos tempos, também enfrentam conflitos enquanto os refugiados lutam para reivindicar sua humanidade.

No final de agosto de 1844, as pessoas em Nápoles estavam morrendo em números tão gritantes que não era mais possível mascarar que a cólera havia chegado. A quarentena militar não havia contido a explosão – a cólera tinha se espalhado pela maior cidade da Itália.

Setembro de 1884: A Epidemia em Nápoles

Os militares fracassaram. Agora cabia às autoridades de saúde tratar a epidemia.

Sempre que os funcionários descobriam uma pessoa suspeita de ter cólera, eles enviavam uma equipe de guardas acompanhados por um médico para apreender a pessoa doente e levá-la ao hospital; um esquadrão de desinfecção apareceria para destruir ou desinfetar os pertences da pessoa doente. No início, o hospital nem sequer tinha camas para acomodar as pessoas que foram transportadas para lá.

Além disso, as autoridades iniciaram uma campanha para “limpar” a cidade, construindo grandes fogueiras de enxofre todas as noites em todas as esquinas e em todas as praças. Isso tornava o ar já poluído quase irrespirável. A cidade também publicou avisos em todos os lugares — no idioma italiano do norte, em vez do dialeto napolitano local — explicando que as pessoas poderiam se proteger da doença vivendo em quartos limpos e arejados, aderindo a uma dieta saudável de alimentos de boa qualidade, bebendo água filtrada e evitando banheiros públicos e estresse emocional… em suma, fazendo parte da classe dominante.

Os funcionários também fizeram algumas coisas úteis, como estabelecer moradia e refeições para os muito pobres e algumas coisas inofensivas, como pintar as paredes de branco. Mas a cólera havia entrado na água potável da cidade e a taxa de mortalidade logo subiu para mais de uma em cada cem pessoas. No ritmo em que os corpos estavam se acumulando, tornou-se impossível enterrar todos os mortos. Alguns foram amontoados em valas comuns, outros foram deixados apodrecendo onde estavam.

A classe média e a aristocracia fugiram da cidade. Desta vez, os militares com alguma consciência de classe não fizeram nenhum esforço para detê-los. O governo proibiu assembléias públicas, mas pessoas desesperadas se aglomeraram nas igrejas para rezar por misericórdia ou percorreram as ruas em procissões religiosas, exigindo doações e atacando aqueles que não podiam pagar.

Em 1884, os cientistas não conheciam tratamento eficaz para a cólera. Os médicos de Nápoles experimentaram uma ampla variedade de abordagens, desde a irrigação do intestino com ácido até a administração de choques elétricos, estricnina e injeções subcutâneas de solução salina. Muitos desses tratamentos apenas aceleraram a morte dos pacientes. Aqueles que sobreviveram aos hospitais contaram histórias de horror sobre os experimentos que os médicos estavam realizando com os que estavam sob seus cuidados.

Como resultado e, devido à ligação desses médicos com os guardas que os acompanharam e as medidas invasivas do estado, a opinião popular se voltou contra os médicos. Muitas pessoas também desconfiavam que esses cavalheiros ricos (que podiam pagar água potável e condições sanitárias) eram tão raramente atingidos pela doença. As pessoas regularmente atacavam médicos quando entravam em bairros pobres, provocando repetidamente confrontos violentos com os militares.

Com a fuga dos ricos, os esforços municipais para limpar os esgotos e pintar as paredes com cal foram lidos metaforicamente, como parte de um esforço para apagar e exterminar os pobres. Como conta Snowden,

Durante setembro de 1884, uma grande onda de fobia de envenenamento tomou conta da cidade de Nápoles. Temendo que os funcionários municipais estivessem envolvidos numa conspiração diabólica para eliminar a população excedente, o povo concluiu que a cólera era literalmente uma guerra de classes. Os profissionais de saúde, médicos e guardas municipais que apareceram subitamente nos bastidores da velha Nápoles eram (considerados) os agentes de uma conspiração mortal. A sua missão seria matar os pobres e a sua arma seria o veneno.

Tal resposta, claro, é incompreensível, se não consideramos o contexto de uma antiga e profunda desconfiança enraizada no povo em relação às autoridades.

Em uma sociedade tão desigual, havia tempo que as autoridades conquistaram essa suspeita para si. Os moradores de Nápoles se sentiram traídos pela estrutura de poder que os governava do norte da Itália, assim como os pobres de Nápoles se sentiram traídos pela classe dominante napolitana. À medida que o mês de setembro avançava, grandes confrontos se desenrolaram entre soldados e moradores da cidade, escalando para tiroteios. Houve rebeliões em duas prisões da cidade. À medida que Nápoles mergulhou no caos, as políticas de saúde pública foram discutidas. Assim como o exército, as autoridades estaduais de saúde não conseguiram resolver a situação.

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A Resposta de Base

Felizmente, as instituições do estado não foram as únicas a responder à epidemia.

A primeira resposta popular foi organizada por trabalhadores comuns em Nápoles, como os que Malatesta havia organizado na década de 1870. Em 29 de agosto, a Società Operaia (“Sociedade Operária”), uma organização radical de apoio mútuo fundada em 1861, anunciou uma nova iniciativa para prestar assistência a qualquer pessoa cuja família tenha sido atingida pela cólera. Essa “companhia sanitária” envolvia um punhado de profissionais de saúde de confiança acompanhados por trabalhadores e trabalhadoras comuns que atuavam como enfermeiros. Apoiada pelos escassos fundos da Società Operaia, eles ofereceram remédios, cobertores limpos, comida e assistência financeira para doentes e pessoas que perderam seus entes. Não querendo ter nada a ver com os hospitais ou o governo da cidade, o grupo tratava pacientes com cólera em suas próprias casas, indo apenas para onde eram explicitamente convidados. Estando conectados aos trabalhadores nos bairros pobres de Nápoles, eles conseguiram divulgar as notícias sobre seus serviços através do boca a boca.

Uma semana depois, em 4 de setembro, um editor de jornal de classe média chamado Rocco de Zerbi convocou uma reunião envolvendo a Società Operaia, a faculdade de medicina da Universidade de Nápoles, representantes da imprensa e vários notáveis locais. A ideia era estabelecer uma organização em toda a cidade que ampliasse a “companhia sanitária” dos trabalhadores. Como costuma acontecer, os esforços iniciais de organizadores radicais de base atraíram ativistas da classe média com mais recursos, convencidos de que poderiam fazer um trabalho melhor no que as pessoas comuns haviam começado. A organização que emergiu dessa reunião, oficialmente denominada Comitê de Assistência às Vítimas de Cólera, passou a ser conhecida coloquialmente como Cruz Branca.

As associações de trabalhadores continuaram a coordenar os esforços de base em toda a cidade mas, devido aos recursos e credenciais de seus patrocinadores, a Cruz Branca recebeu o crédito por tudo na mídia internacional e na subsequente historiografia. Isso não surpreende, considerando que o orçamento da Cruz Branca acabou sendo 200 vezes maior que os fundos iniciais que a Società Operaia havia levantado. Mesmo assim, a Cruz Branca dependia dos contatos dos trabalhadores e da confiança que as organizações trabalhistas radicais haviam conquistado entre os pobres e rebeldes.

A influência das associações de trabalhadores e a prudência dos trabalhadores obrigaram a Cruz Branca a aderir a uma abordagem fundamentalmente antiautoritária. Para garantir que ninguém duvidasse de suas boas intenções, a Cruz Branca era composta inteiramente por voluntários não remunerados. Em vez de experimentar tratamentos experimentais em pacientes, os voluntários da Cruz Branca se empenharam em fornecer cuidados paliativos e em distribuir cobertores, lençóis, colchões, desinfetantes e alimentos frescos. Eles nunca carregaram armas com eles e não insistiram em fumigação obrigatória ou em destruir a propriedade de pacientes com cólera. Aprendendo com a iniciativa da Società Operaia, eles se distanciaram do estado, oferecendo assistência apenas quando solicitados e recusando-se a ter qualquer relação com os guardas que acompanhavam os médicos dirigidos pelo estado.

Como de Zerbi escreveu posteriormente,

Nunca permiti uma fusão entre nosso serviço médico e o da cidade. Qualquer fusão desse tipo nos tornaria oficiais e, assim, destruiria nosso trabalho… porque o público teria nos temido e nos evitado.

Enquanto ativistas da classe média estavam adotando o modelo demonstrado pelos organizadores de base, outros personagens menos agradáveis disputavam para se apresentar como os salvadores de Nápoles.

O rei Umberto, filho de Victor Emmanuel, sob o qual a Itália fora unificada, chegou a Nápoles em 9 de setembro. Umberto era um conservador reacionário, odiado por trabalhadores e radicais em toda a Itália devido às suas políticas. No ano em que chegou ao poder, em 1878, o anarquista Giovanni Passannante tentou assassiná-lo; anos após a epidemia, em 1900, o anarquista Gaetano Bresci conseguiu finalmente matar Umberto para se vingar da decisão do rei de recompensar um general que havia massacrado mais de 300 manifestantes a sangue frio em 1898. (Aliás, pouco antes disso, Bresci também arriscou sua vida para desarmar um homem que tentou assassinar Malatesta a tiros.) Rei Umberto não era amigo dos pobres.

O regime de Umberto vinha brigando com a Igreja Católica; sua visita a Nápoles foi planejada para reparar esse relacionamento, consolidando o conservadorismo na Itália. Outras instituições da classe dominante, como o Banco de Nápoles, estavam procurando maneiras de reestabilizar a economia por meio da filantropia. Se a monarquia, a Igreja e o alto escalão dos capitalistas financeiros conseguissem se apresentar como os que cuidavam do povo de Nápoles, o povo daria legitimidade ao seu poder, dificultando a mobilização das organizações de base para resistir às várias formas de opressão que preservou seus privilégios.

E enquanto isso, milhares estavam morrendo em Nápoles.

Cholera in Naples.

Anarquistas em Nápoles

Essas eram as questões quando Malatesta e outros anarquistas de toda a Itália tentavam partir para Nápoles. Eles estavam organizando esforços solidários para as pessoas afetadas pelo surto de cólera desde o início de agosto. Eles estavam ansiosos para participar em campo dos grupos de socorro. O próprio Malatesta havia crescido em Nápoles e estudado medicina uma vez. A sentença de prisão pairando sobre sua cabeça não o deteve. No entanto, até o início de setembro, Malatesta e seus companheiros em Florença não tinham conseguido arrecadar dinheiro suficiente para pagar a viagem.

Em “Galileu Palla e os eventos de Roma (1º de Maio de 1891)”, publicado na edição de 23 de maio de 1891 do jornal semanal La Rivendicazione (“A Reivindicação”) em Forlí2, Malatesta relembra como conheceu Galileo Palla, um anarquista que ajudou a financiar sua viagem e elogia os incansáveis esforços de Palla quando chegaram a Nápoles.

“Conheci Galileu Palla em Florença em 1884. A cólera se castigou Nápoles e muitos de nós socialistas ansiavam por nos apressar em resgatar aqueles que sofriam de cólera. Enquanto tentávamos arrecadar o dinheiro da viagem, Palla chegou, também estava indo para Nápoles e, como tinha mais dinheiro do que o necessário para a passagem ferroviária, parou em Florença para ver se poderia prestar assistência a quem estivesse disposto a ir, mas não podia partir por falta de dinheiro.”

Ele veio à minha casa gritando e gesticulando. “Como”, ele me dirigiu, “como é que você não está indo para Nápoles, Errico!”

—“Quem é Você?” Eu perguntei.

— “Que diferença isso faz pra você?” foi sua resposta. “Aqueles que sofrem de cólera não precisam saber o nome de quem está ao lado da cama”.

“Está certo”, eu disse, “vários de nós aqui querem ir, mas ainda não conseguimos reunir o dinheiro para a viagem”. Então Palla esvaziou os bolsos na mesa e, assim, com o seu dinheiro e o que pudemos encontrar em Florença, fomos capazes de partir — Gigia Pezzi, Arturo Feroci, Vinci, Delvecchio, eu e outros companheiros.

A conduta de Palla em Nápoles foi esplêndida. Corajoso, infatigável, noite e dia, ele estava sempre no trabalho. Estávamos todos sem dinheiro, às vezes passávamos fome e quase invejávamos a sopa que servimos aos convalescentes. Palla recebeu algum dinheiro enviado de casa, que foi totalmente pensada para suas necessidades; mas, como qualquer um de nós teria feito, ele colocou o dinheiro no fundo comum para que todos pudéssemos sobreviver até o final da epidemia.

Rocco De Zerbi: Não pergunte nada aos anarquistas. Você não pode ter esquecido os serviços dos anarquistas de Florença se se lembrar de um jovem alto, magro e de cara fechada que, nos momentos em que esperava que as responsabilidades fossem distribuídas, ficava na os fundos da sala do Comitê da Cruz Branca, em silêncio, atrás de todos, mas que, no primeiro chamado por voluntários, pulava antes de qualquer outra pessoa e avançavam gritando: “Eu! Eu vou!”

“Mas você”, eles diriam às vezes, “você está fora do turno agora”.

“Não importa”, ele respondia: “Eu posso voltar.” E ele voltou e surpreendeu a todos com sua extraordinária resistência física, conquistando admiração pelo coração, devoção e delicadeza que dedicou a cuidar dos doentes. Aquele jovem era Palla.3

Este livro de memórias indica o quanto Malatesta, Palla e outros trabalharam com a Cruz Branca em Nápoles — e fornece uma dica sobre o caráter desse relacionamento.

Em 13 de setembro, mais de mil voluntários haviam participado do esforço de socorro de toda a Itália, além de Suíça, França, Inglaterra e Suécia. Em comparação com os esforços do estado, a mobilização foi um tremendo sucesso. Aproximadamente dois terços dos pacientes sob os cuidados dos voluntários da Cruz Branca sobreviveram; isso contrasta acentuadamente com as taxas de mortalidade nos hospitais de Nápoles, nos quais a maioria dos pacientes com cólera morreu.

Os anarquistas estavam na vanguarda desses esforços. Segundo Nunzio Dell’Erba (ver apêndice), Malatesta e Palla se juntaram a Nápoles por outros camaradas de Florença, incluindo Luigia Minguzzi, Francesco Pezzi, Arturo Feroci, Giuseppe Cioci e Pietro Vinci, sem mencionar muitos outros anarquistas de todo a península. Não sabemos quantos deles contraíram a cólera no decorrer de seu trabalho, mas sabemos que dois anarquistas morreram por ela — Antonio Valdrè e Rocco Lombardo —, além do socialista Massimiliano Boschi.

A Cruz Branca dividiu Nápoles em doze seções. De acordo com Luigi Fabbri, Malatesta e seus camaradas assumiram a responsabilidade de organizar uma dessas seções. Fabbri afirma que os pacientes com cólera nesta seção tiveram a maior taxa de recuperação em toda a cidade de Nápoles, porque Malatesta — tendo crescido em Nápoles e tendo relações íntimas com os figuras mais militantes do movimento dos trabalhadores locais — estava particularmente bem equipado para instar o governo da cidade a entregar alimentos e remédios, que os anarquistas distribuíram aos necessitados.

O relato de Fabbri é baseado em histórias que ele deve ter ouvido do próprio Malatesta. Algum material chegou de Malatesta, contribuindo para tal. De acordo com o registro do tribunal em “Verbale d’Udienza”, de 21 a 28 de abril, quando no julgamento em Ancona em 1898, Malatesta testemunhou:

“Em 1884, depois de reunir um grupo de anarquistas, fui a Nápoles para ajudar as vítimas da cólera; meus professores me encarregaram do serviço médico e fiquei em Nápoles até o surto passar e fui elogiado por isso.”

Uma transcrição ligeiramente diferente dessas observações aparece no periódico L’Agitazione, no qual se diz que Malatesta adicionou:

“Eu também estava em Nápoles durante a epidemia e o comitê me elogiou.”4

Podemos ver mais sobre a experiência dos anarquistas em Nápoles nos relatórios da Itália que apareceram no periódico anarquista suíço Le Révolté entre setembro e dezembro de 1884:

“A cólera também fez sua visita fatal na Itália e, a essa hora, colhe muitas vítimas, naturalmente entre famílias proletárias que não podem se dar ao luxo da higiene, pela simples razão de que é um privilégio que somente a burguesia possui, como todas as outras coisas.”

-Le Révolté, 14 de setembro 14 de 1884.


“Ao escrever estas poucas linhas, quero oferecer um tributo de solidariedade ao nosso camarada Rocco Lombardo, de Gênova.”

“Um jovem charmoso, com apenas 27 anos, corajoso e generoso, foi um dos mais dedicados e inteligentes entre os anarquistas revolucionários de Gênova. Ele dedicou toda a sua força e todos os seus pensamentos à nossa causa — que um movimento revolucionário ocorreu, onde quer que fosse, para garantir que fosse organizado da maneira correta, conforme exigiam suas aspirações e sua incansável devoção.

Uma oportunidade se apresentou; A cólera estava em Nápoles e ceifou muitas vítimas dentre seus irmãos proletários, juntou-se a outros companheiros e partiu de Milão, onde estava, para entrar no coração do perigo.

Assim que chegou a Nápoles, ele foi um dos mais notáveis por sua coragem e altruísmo em ajudar as vítimas da terrível praga. Atingido pela doença, este modesto herói do sacrifício morreu em 18 de setembro.

Lombardo era um propagandista firme. No ano passado, em Turim, fundou o jornal Proximus Tuus, que apoiou com seus companheiros até o último momento, por meio de todos os sacrifícios de que era capaz. Este jornal manteve o fogo até o último cartucho, permanecendo na ofensiva por vários meses.

Pobre Rocco, você morreu sem ter um amigo perto de você para lhe prestar uma justa homenagem de solidariedade. Hoje, estamos enviando para você no seu túmulo, assumindo o compromisso de defender essas idéias que lhe eram tão queridas e de nos sacrificar como você fez pela Revolução Social.

-Le Révolté, 28 de setembro de 1884


“Recebemos de nossos amigos em Milão um protesto contra as calúnias que a imprensa clerical e burguesa amontoa contra os anarquistas, e em particular o companheiro Rocco Lombardo, cuja morte anunciamos em nossa última edição. Camaradas, é inútil perder tempo refutando as calúnias desses fantoches. Apenas dê um chute neles em algum lugar quando os encontrar… ”

-Le Révolté, 25 de outubro de 1884


“Em Nápoles, como você sabe, a cólera causou estragos entre os trabalhadores. Não poderia haver prova mais clara da desigualdade da sociedade atual. Nossos amigos que foram durante a epidemia para tratar os doentes acabam de publicar um manifesto no qual expuseram a verdadeira causa da cólera — pobreza; e indicou o único remédio — a Revolução Social.

“Os jornais daqui ficaram escandalizados, naturalmente, e um jornal clerical não deixou de invocar a ira da polícia contra esses anarquistas implacáveis, que se recusam a permitir que o povo morra em paz.”

-“Révolté,” 7 de dezembro de 1884

Infelizmente, até onde sabemos, ninguém foi capaz de exibir o manifesto mencionado na edição de 7 de dezembro.


Vítoria contra a Peste?

A Cruz Branca se desfez oficialmente em 26 de setembro, anunciando que a crise havia passado a tal ponto que as autoridades municipais puderam mais uma vez lidar com a epidemia por conta própria. Presuma-se que as associações de trabalhadores continuaram a manter seus próprios esforços de ajuda mútua, exatamente como antes da aparição da Cruz Branca. Graças, em parte, a seus esforços, as mortes caíram significativamente em outubro e a epidemia terminou oficialmente no início de novembro. A mobilização popular não havia derrotado a cólera sozinha — mas havia conseguido algo que o estado não conseguiu, ajudando milhares de pessoas pobres a sobreviver à catástrofe. Acima de tudo, o movimento havia demonstrado que os melhores programas de ajuda são aqueles iniciados pelas pessoas necessitadas, permitindo que elas definam por si mesmos quais são suas necessidades e prioridades.

Malatesta foi nomeado com um prêmio oficial em reconhecimento a seus esforços. Ele recusou. O mesmo estado que estava tentando recompensá-lo pelo que havia feito em Nápoles também estava esperando para prendê-lo por coisas que não havia feito em Florença. Além disso, ele não queria ser um líder — apenas um camarada entre camaradas.

Se é verdade, como diz Fabbri, que os pobres napolitanos na seção de Nápoles que Malatesta ajudou a organizar tiveram a maior taxa de sobrevivência — não por causa das proezas médicas de Malatesta, mas por causa da energia que anarquistas conseguiram reunir para forçar o governo a disponibilizar os recursos acumulados — isso confirma a afirmação de que “a verdadeira causa da cólera foi a pobreza”. Em Nápoles, nos Tempos da Cólera, o historiador Frank Snowden argumenta que a pobreza foi a principal causa da epidemia de 1884 em Nápoles: “A cólera vive da pobreza porque os pobres, por desnutrição e distúrbios intestinais, estão predispostos a contrair a doença”.

A principal solução para a cólera, como sabemos agora, é colocar fontes de água limpa e saneamento à disposição de todos. Encanadores, não médicos, são os heróis dessa história. Mas — como repetidos surtos de cólera em Nápoles e em outros lugares ao longo dos séculos XX e XXI — reis, capitalistas e presidentes manterão parte da população em condições degradantes, a menos que a solidariedade coletiva e a rebelião radical os forcem a compartilhar os recursos eles tentam acumular às nossas custas.

Para citar o manifesto perdido, o verdadeiro remédio para impedir o retorno da cólera pode ser nada menos que a revolução social.


Reflexões Posteriores

Naquele outono, depois de voltar a Florença, Malatesta conseguiu se esquivar da sentença de prisão que o perseguia, escapando da Itália escondido em uma caixa de máquinas de costura. Durante o meio século seguinte, ele continuou organizando e escrevendo, deixando sua marca no movimento anarquista nos três continentes.

Em seus escritos, ele repetidamente se baseou em sua experiência com a cólera, usando-a para ilustrar como os destinos dos seres humanos em lados opostos do globo estão inextricavelmente ligados – um ponto que a pandemia do COVID-19 nos demonstrou mais uma vez hoje – e enfatizando que o próprio estado não pode promover a saúde, e ainda impede profissionais de preservá-la.

Concluímos com alguns trechos de seu trabalho.

“Habitantes de Nápoles estão tão interessados no saneamento das lagoas de sua cidade quanto na melhoria das condições de higiene das cidades localizadas nas margens do Ganges, de onde vem a sombria cólera. A liberdade, o bem-estar e o futuro de um alpinista perdido entre os desfiladeiros dos Apeninos não dependem apenas do bem-estar ou da miséria em que os vizinhos de sua aldeia se encontram, nem das condições gerais do povo italiano, mas eles dependem também dos trabalhadores da América, da Austrália, da descoberta de um sábio sueco, das condições morais e materiais dos chineses, da guerra ou da paz existente no continente africano, enfim, de todas as circunstâncias, grandes ou pequenas que, em qualquer ponto do globo, exerçam sua influência sobre um ser humano. ”

-Errico Malatesta, “Anarquia”


“Os que ocupam cargos no governo, retirados de sua antiga posição social, preocupados principalmente em manter o poder, perdem todo o poder de agir espontaneamente e se tornam apenas um obstáculo à ação livre de outras pessoas.

“Com a abolição dessa potência negativa que constitui o governo, a sociedade se tornará a que pode ser, com as forças e capacidades dadas do momento…

“Se houver médicos e professores de higiene, eles se organizarão à serviço da saúde. E se não houver, um governo não poderá criá-los; tudo o que pode fazer é desacreditá-los aos olhos das pessoas — que estão inclinadas a alimentar suspeitas, às vezes muito bem fundamentadas, com relação a tudo o que lhes é imposto — e fazer com que sejam massacradas como envenenadoras quando visitam pessoas atingidas pela cólera.”

-Errico Malatesta, “Anarquia


“Não pergunte, um camarada disse, o que devemos trocar pela cólera. É um mal, e o mal deve ser eliminado, não substituído. Isso é verdade. Mas o problema é que a cólera persiste e retorna, a menos que as condições de higiene melhorada substituam as que primeiro permitiram que a doença tomasse lugar e se espalhasse.”

-Errico Malatesta, “Demoliamo. E poi?” Pensiero e Volontà (Rome) 3, no. 10 (16 de junho de 1926).


Apêndice: Referências Adicionais

As Origens do Socialismo em Nápoles, por Nunzio Dell’Erba e O Anarquismo Italiano, 1864-1892 por Nunzio Pernicone, oferecem relatos curtos da mobilização anarquista em resposta à epidemia em Nápoles. O livro de Pernicone está disponível em inglês, publicado pela AK Press. Aqui está o material relevante do livro de Nunzio Dell’Erba em uma tradução livre:

Nos meses de agosto e setembro de [1884], houve uma intensa participação dos anarquistas de toda a Itália nos esforços de generosidade e assistência às populações napolitanas afetadas pela cólera.

Em 13 de setembro, Luigia Minguzzi, Pezzi, Malatesta, Arturo Feroci, Galileo Palla, Giuseppe Cioci e Pietro Vinci partiram para Nápoles; no mesmo período, Cavallotti, Musini, a ex-política anarquista Andrea Costa e outros foram para lá. Os socialistas de Ravenna enviaram seus desejos de que os proletários do Mezzogiorno, no sul da Itália, “logo se libertariam imediatamente do contágio da cólera, como um dia (eles se libertarão) do contágio burguês, que mata como qualquer doença”. 5 Na manifestação solidária dos socialistas de Ravena, as vozes animadas e poderosas dos socialistas de Parma, Bolonha, Lugo, Turim, Alexandria, Gênova e Milão se uniram em protesto contra o [primeiro ministro] “feiticeiro” Agostino Depretis e para ajudar seus companheiros do Mezzogiorno.

No final de setembro de 1884, três deles, o litógrafo Rocco Lombardo, do grupo anarquista milanês, Massimiliano Boschi, da Associação “Os Direitos da Humanidade” de Parma, e Antonio Valdrè, de Castelbolognese, foram vítimas da epidemia.

A cólera exacerbou as já tristes condições do proletariado, forçando os chefes a demitir seus trabalhadores ou lojistas para fechar suas lojas, como ocorreu no caso do “sindicato dos sapateiros” que envolveu cerca de 400 membros. Mas, como Carlo Gardelli, um socialista de Romagna que se mudou para Nápoles, lembrou, a cólera “não apenas causou sérios danos materiais, mas também causou outras formas de dano imensamente maiores no campo moral”. 5


Leituras Aprofundadas


  1. O relato de Fabbri encontra eco na versão de Max Nettlau, publicada alguns anos antes em Errico Malatesta: The Biography of an Anarchist: “No outono de 1884, Malatesta e outros camaradas foram para Nápoles, onde a cólera tinha tomado proporções alarmantes e trabalharam em os hospitais. Costa e outros socialistas fizeram o mesmo. Dois anarquistas, Rocco Lombardo, ex-editor dos ‘Proximus Tuus’ de Turim, e Antonio Valdre sucumbiram à epidemia. Aqueles que retornaram declararam em um manifesto que a verdadeira causa da cólera era a miséria e o verdadeiro remédio para a revolução social (c. “Revolte”, 28 de setembro, 7 de dezembro de 1884; 8 de novembro de 1885). 

  2. Este artigo foi reproduzido posteriormente na edição de 1 de outubro de 1933 da Studi Sociali em Montevidéu, onde lemos, graças à ajuda de Davide Turcato. 

  3. Malatesta continua: “Após a epidemia de cólera em Nápoles, eu sempre estive em contato ou em uma relação íntima com Palla; eu o vi em circunstâncias muito difíceis e sempre o achei bom, sempre pronto para colocar a si mesmo e seu dinheiro a serviço da causa, amigos ou necessidades, sempre corajoso e primeiro a enfrentar o perigo, sempre atento a tudo em sua alma, com toda a sua força dedicada ao triunfo da bondade. Penetrei, por força da intimidade, nas profundezas de seu caráter um tanto selvagem e vi um imenso amor pelos homens, uma forte fé na bondade, uma firme decisão de consagrar sua vida ao triunfo de sua ideia e vi com emoção como essas qualidades apostólicas estavam harmoniosamente unidas ao profundo afeto que ele sentia por sua mãe, de quem ele se lembrava frequentemente e cuja memória encheu seus olhos azuis de lágrimas.” 

  4. “Il Processo,” parts 1-10, L’Agitazione, Supplemento Quotidiano, nos. 1-10 (April 21-30, 1898). Ambas trasncrições em inglês na coleção de Davide Turcato sobre os escritos de Malatesta, A Long and Patient Work: The Anarchist Socialism of L’Agitazione, 1897-1898. 

  5. Veja a carta de Carlo Lardelli, Nápoles, 1º de dezembro de 1884, em “Il Commune”, a. II, 7-8 de dezembro de 1884, n. 59. “O padre soube aproveitar a triste ocasião e explorá-la; ele sabia, em seu infortúnio, a fraqueza da população e lucrava com ela. Hoje ele é o mestre nesse campo. As portas das casas estão cobertas de escritos ainda suplicando a Deus e à Virgem Maria pela libertação do flagelo, as paredes são mais uma vez cobertas de imagens, como se estivessem sob o domínio dos Bourbon. Não há mais fé na ciência e no trabalho da humanidade. Mais esperança é investida em gotas de de água benta do que em qualquer medicamento.”  2